Conversas de livros
Resenhas, críticas e análises literárias de forma descontraída, convidando você a explorar e debater novas leituras com a gente.
Há livros que nos convidam a uma valsa. “Gelo”, de Mabelly Venson, não é um desses livros. Este livro nos desafia a uma queda livre, a uma vertigem que parece não se desfazer em estradas previsíveis. Cada linha é uma lâmina, cada frase é um projétil, e o leitor – instigado e desavisado – não demora a entender que, nas páginas deste texto, não há descanso possível. Não há prelúdios que acalmem o espírito antes de um fato ou seções que nos conduzam pelo braço para entender as profundezas onde caímos. Aqui, não há uma margem onde a razão possa desembarcar para observar à distância; o mergulho é direto e a corrente, violenta.
Mabelly escreve como quem descasca o nervo vivo de uma história, sem excedentes. Sua escrita é visceral, uma sequência de nós e tensões, um laço apertado. Ela não nos poupa das fissuras, do arrepio e do mal-estar – e tampouco tenta nos convencer de que o mundo guarda alguma compaixão em seus recantos mais escuros. É, assim, um texto que restaura a crueldade e o sobressalto da vida, aquele pulso agudo de viver num onde o afeto está entrelaçado à violência.
E o que torna essa experiência tão perturbadora é a maneira como “Gelo” é capaz de desestabilizar as fronteiras entre realidade e o que parecem lembranças, entre leitura e experiência vivida. O realismo é despido de doçura; os personagens, despidos de mesuras; e o pathos que espreita a todos, sem dúvida, vive nas frestas de uma batalha contra a hipocrisia, um enfrentamento direto contra a aparência de um mundo civilizado.
Em “Gelo”, a mulher não é um tema ou um assunto, mas um alvo. Ou talvez a mulher seja a tragédia mesma, o ponto de partida e de chegada. Um livro perfeito para “mulherzinha”, já que pode ser lido entre uma mamadeira e um banho.
Mabelly escreve sobre o feminino de forma desconcertante, tirando-nos qualquer ângulo de conforto que tente domesticar o que é, no fundo, imensamente complexo. Longe de uma postura que busca apontar e discutir conceitos, seu texto legitima, na carne e no osso, o que é atravessado por cicatrizes, é pólvora, é memória incandescente, é maternidade febril e frieza entrelaçadas. E, mais que isso, é uma realidade cruel, sem filtros. Mabelly se apropria do miniconto para tensionar os pontos mais frágeis dessa trama de ser mulher, como se cada história fosse um soco preciso, rápido, avassalador.
E ao final, o que resta ao leitor? Talvez não reste nada intacto, senão a certeza de que algo foi rompido e remendado ao mesmo tempo, e que esse novo tecido da percepção é mais verdadeiro, embora mais desconfortável. Há algo de brutal na franqueza com que o livro nos implode, mas ao mesmo tempo nos reconstrói – num ciclo contínuo de destruição e ressurreição que é, talvez, o maior gesto de honestidade. “Gelo” é um livro perfeito para quem ousa descer até a raiz do que é ser mulher, para quem está disposto a ser deslocado em uma narrativa que não nos convida a pensar, mas nos obriga a sentir.
Autoria
Katiuce Lopes Justino nasceu em Sertãozinho, São Paulo. Doutora em Letras e Mestre em Literaturas em Língua Portuguesa pela UNESP, é autora dos livros Ver como criança: a poesia como exercício do olhar e Mancha Gráfica. Poeta dedicada, atua como formadora de professores em São José do Rio Preto, cidade onde vive atualmente.
Instagram: @j_kati_lopes
A obra
As produções de Flávio Adriano são como uma adaga cortante que perscrutam zonas obscuras e intocáveis do inconsciente. Tem a potência de nos conduzir a várias perguntas sobre aspectos pessoais de funcionamento singular e coletivo. É através da literatura que ele põe no papel os segredos que habitam os pensamentos e com a poesia, faz segregar secretos segredos sagrados-sangrantes. Quase um trava-línguas. Uma colisão.
Uma colisão cuja qual na língua de nossa pátria e solo-outro, a dita portuguesa, tem a função de repetição de consoantes iguais ou semelhantes, provocando dissonância, gerando desassossego.
Na vida, é o ato ou efeito de colidir, embate entre os corpos pensantes. Corpos que lutam para amar, que lutam para existir. Provocando dissonâncias, sequestrando ex-sistências.
Destaque especial se faz para as poesias que representam sujeitos que encontram no corpo um lugar, um sentido entre os pares, provocando fogo, sangue, subversão e amor-próprio.
E assim é Amar-Lutar. Nos faz pensar na capacidade do nosso progresso psíquico, na suplência de existir para além das grossas correntes do inconsciente e do interminável rechaço tão bem transmitido pela coletividade.
Inicia a obra com uma fluida viagem paratextual que atrai desde o leitor mais exigente ao mais iniciante. De modo intrigante e instigante, a sensualidade das experiências é escancarada na escrita, demostrando conjuntamente a densa militância em busca de uma causa própria.
Causa esta que enseja tamponar a dor das insuficiências com a poesia, que põe o amor a lutar contra as amarguras e arranca as escaras da marginalidade com as palavras.
O livro mostra uma possibilidade de saída para os afetos presos, que podem ser expurgados pela escrita, permitindo existir para si e deixar o desejo fluir. Pode-se caminhar-lutando em espaços nativos, estrangeiros ou infinitos, nos ensinando a magnitude e as múltiplas possibilidades de amar e de agir.
É uma oportunidade de relembrar o quanto podemos apreciar as cores da vida, respeitar e amar o próximo como a nós mesmos. E sobretudo respeitar. Podemos respeitar as Dandara, as femme fatales – ditas criminosas, as Marielle, os João Helio, os Galdino dos Santos, os Wesner Oliveira e tantos mais…
Dentro desse corpo-espaço, cabem muitos aprendizados. Cabe muito amor. Amor ao meu corpo, ao teu corpo e a esses forasteiros corpos-outros. E aos alijados de voz e vez, ora são as minas ora são os manos.
A plaquete baunilha, na obra Amar-Lutar, de Flavio Adriano, demostra com seus escritos poéticos que todos têm algo a contribuir para a sociedade. Também entendemos que não precisamos repetir inutilidades e cobrir as ruas de rubros sangue, porque já o são.
O imperfeito pretérito se faz presente.
A poesia é uma linguagem que nos ensina a prosseguir quando nada nos é oferecido, podemos barrar pecados, prevenir pedras tacadas nas bichas e nas Geni, diminuir o retorno do recalcado e, acima de tudo, construir um futuro, um depois e um agora, evitando funestos destinos, sem a necessidade de sangues espargidos.
As ruas podem ser rubras, mas, com pedrinhas brilhantes para o amor passar, desfiladeiros do amor-próprio, do respeito adquirido e da causa em favor da vida.
Sempre poderemos amar, insistir, respeitar e lutar. A militância da vida persiste. Por uma vida digna, por uma colheita-amor, vale ir até o fim.
Plaquete Baunilha. Amar-lutar. Nantes. F. A. Curitiba: Comala, 2024.
Campo Grande-MS, 29 de novembro de 2024.
Autoria
Giovana Guzzo Freire. Psicóloga (CRP14/03270-3). Mestre em Psicologia (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, 2015). Psicanalista membro do Fórum do Campo Lacaniano de Mato Grosso do Sul (FCL-MS). Gosta de gatos, cafés e poesias. giovanaguzzo@gmail.com